Iniciado no dia 2 de agosto o julgamento do Mensalão está na sua reta final. Foram muitas sessões – todas disponíveis no
canal do Supremo Tribunal Federal (STF) no YouTube
– e, contrariando muitas das expectativas de quando o escândalo do
Mensalão estourou, muitos dos envolvidos irão mesmo “pagar” pelos seus
crimes.
Em
tempos de redes sociais é claro que esse julgamento acabou ganhando o
seu espaço e dois Ministros do STF acabaram aparecendo com mais destaque
que José Dirceu e outros acusados. Esses dois Ministros apareceram em
várias imagens compartilhadas, principalmente pelo Facebook, e por
razões opostas: por um lado, o Ministro Joaquim Barbosa, relator do
processo, ao votar pela condenação em quase todos os casos logo virou
uma espécie de herói, ganhando o apelido de “Batman”, sendo a sua toga
apontada como a capa do personagem Batman; por outro lado, o Ministro
Ricardo
Lewandowski,
revisor do processo, caminhou na contramão da opinião pública ao votar
pela absolvição diversas vezes, e acabou virando uma espécie de vilão.
Durante as várias sessões foram citados Chico Buarque, Cazuza e
Fernando Pessoa. Os advogados de defesa também não economizaram termos
ao se referirem às acusações: enquanto um disse que elas eram “fruto de
criação mental do acusador”, outro preferiu dizer que se tratava de um
“ilusionismo jurídico”. Criatividade não faltou e até os nomes de Rita e
Carminha, da então novela das oito, foram citados. E Kafka também
marcou presença!
No dia 3 de outubro, ao dar o seu voto sobre a acusação a José
Genoíno, de corrupção ativa, Lewandowski afirmou que o Ministério
Público não havia reunido provas contra Genoíno e então disse que “o réu
viu-se obrigado a enfrentar a kafkiana tarefa de defender-se de
acusações abstratas e impessoais” (
o voto de Lewandowski pode ser conferido nesse vídeo – a referência a Kafka é a partir dos 28min).
Com direito ainda a um “Quem não leu ‘O Processo’ de Kafka?”,
Lewandowski votou pela absolvição de Genoíno. Mas parece que os demais
Ministros não viram assim tanta semelhança entre a situação de José
Genoíno e a de
Josef K e votaram pela condenação.
Antes disso Kafka já havia aparecido pelas sessões do julgamento do
Mensalão. O advogado de Ayanna Tenório disse que a acusação a ela era
kafkiana. “Rigorosamente nenhuma conduta é imputada a Ayanna. Nenhuma
conduta”. Ayanna foi absolvida das três acusações.
Temos
ainda muitos outros casos. O já aposentado ministro Eros Grau também
recorreu ao termo em 2005. O Ministro Marco Aurélio Mello já usou a
expressão algumas vezes, sendo uma delas durante uma sessão referente à
Operação Furacão (nome dado à operação montada entre 2006 e 2007 para
investigar um esquema de exploração e favorecimento de jogos ilegais –
cujo resultado foi a prisão de bicheiros e empresários, além de
magistrados e policiais envolvidos). E estes são apenas alguns exemplos
entre os que eu consegui identificar. O melhor exemplo talvez venha de
José Sarney: mais de uma vez ele já declarou se sentir como uma vítima
de um processo
kafkiano.
Mas
o que é que Kafka tem a ver com o Mensalão e o que é uma situação ou um
processo kafkiano? Uma das definições de “kafkiano” de acordo com o
Dicionário Houaiss é: “que, de forma semelhante à obra de Kafka, evoca
uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, especialmente em um contexto
burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade”. Para quem
leu as obras de Kafka (“
O Processo”, “
A Metamorfose” e “
O Castelo”
principalmente, mas também os seus diversos contos) fica fácil
compreender o significado; e para quem ainda não leu eu deixarei as
coisas um pouco mais claras.
(Para ajudar a compreensão do termo, coloco aqui um trecho do
livro “Cronistas do absurdo: Kafka, Büchner, Brecht, Ionesco”, de
Leo Gilson Ribeiro:
“No cosmos kafkiano tudo é possível, o medonho, o absurdo, a loucura, a
crueldade, a injustiça – ou a justiça que nós seres humanos não podemos
compreender – estão sempre latentes, vigiando-nos, à espreita do nosso
primeiro momento de distração para saltar sobre nós, suas presas
indefesas.”)
Essa referência a
Kafka, que é feita
não raramente no meio jurídico, é baseada principalmente no livro “O
Processo”, que ele começou a escrever em 1914 e que foi publicado apenas
postumamente, em 1925.
Trata-se da história de Josef K., que no dia do seu aniversário de 30
anos acorda com a entrada de um homem em seu quarto. O livro começa com
a frase “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele
foi detido sem ter feito mal algum.” e já no primeiro capítulo ele se
esforça para tentar arrancar dos guardas alguma resposta: qual o motivo
que os levara ali?, qual o motivo para ele ser detido?, do que ele
estava sendo acusado?, quem o estava acusando? Tudo em vão.
Kafka escreveu os capítulos de maneira separada. Às vezes começava um
capítulo sem ter terminado o anterior (e o fazia ora no mesmo caderno,
ora em cadernos diferentes) e alguns capítulos não foram terminados. Os
textos Kafka entregou ao seu amigo Max Brod, que em vez de atender ao
pedido do amigo e queimar os seus manuscritos, preferiu publicá-los.
Hoje se percebe muitos erros na ordem dos capítulos estabelecida pela
edição publicada por Max Brod. Mas o interessante é que isso não altera
substancialmente a leitura d’“
O Processo”:
os capítulos não estão ligados sucessivamente, não há uma ordem exata
da história. Ou seja: não é necessária uma construção correta e
sequenciada dos capítulos para que a história se resolva como tem que
ser simplesmente pelo fato de que a história não tem uma resolução como
seria de se esperar
Josef
K. se vê então sofrendo um processo sobre o qual nada sabe, tendo que
comparecer ao Tribunal e tentando se defender sem saber exatamente do
quê e tendo a certeza de não ter infringido as leis (as quais ele não
conhece e às quais ele não tem acesso). Os funcionários – e, em
consequência, todo o sistema que o julga – diversas vezes se demonstram
propensos à corrupção e entregues à ineficiência. A tensão que marca
cada passo de K. é impressionante principalmente pelo fato de o processo
não ser esclarecido ao longo do livro.
Kafka era formado em Direito e trabalhou anos para uma companhia de
seguros contra acidentes de trabalho, e a partir disso é fácil perceber
que a burocracia (tão marcante n’”O Processo”) era característica comum
na vida de
Kafka. Mas o que não quer dizer que o livro seja um reflexo da sua vida – como “
A Metamorfose”
e os demais textos dele, este livro tem diversas interpretações
(teológicas, políticas, psicanalíticas, entre outras) e seria um grande
erro querer analisá-lo do ponto de vista do caráter biográfico.
Muitos especialistas identificam neste livro uma clara e direta relação com “
Crime e Castigo”, de
Dostoiévski,
e uma grande semelhança no modo como Raskólhnikov e Josef K. lidam com a
culpa que lhes é atribuída. Há uma importante diferença, porém: o
personagem dostoiesvskiano comete um crime e é, portanto, ciente da sua
culpa; enquanto o personagem kafkiano não tem culpa – pelo menos é o que
ele alega – e não sabe por qual motivo está sofrendo um processo.
Entende agora o que o advogado de Ayanna Tenório quis dizer quando
afirmou que a acusação a ela era kafkiana? É possível ver em “
O Processo”
uma inversão na lógica de “era culpado, por isso foi punido” para um
ilógico “foi punido, então era culpado”. O princípio de que todos são
inocentes até provem o contrário já não parece tão certo n’”O Processo” e
Josef K. é empurrado (ou será que ele se atira?) para esse caminho da
culpa. É assim, portanto, que podemos compreender quando Lewandowski
disse que “o réu viu-se obrigado a enfrentar a kafkiana tarefa de
defender-se de acusações abstratas e impessoais”, pois essa “kafkiana
tarefa” é o que Josef K. enfrenta de uma maneira que me parece a mais
angustiante possível.
E se você ainda não leu “O Processo”, mas agora pretende fazê-lo o
mais breve possível, então eu te desejo uma boa leitura kafkiana.